As "marimbas" Chope de Moçambique (pt. 1): passado pré-colonial e contextualização sociocultural


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1. Introdução

A referência escrita mais antiga a respeito dos Chope, da sua música de “marimbas” e das respectivas danças, tanto quanto foi possível averiguar, data de 1560, resultado da correspondência entre o Padre André Fernandes, e os Irmãos e Padres da Companhia de Jesus, quando este se encontrava numa região compreendida entre as cidades de Inhambane e do Xai-Xai (Rocha, 1986). Nessas cartas, André Fernandes, reconhecendo já o valor da sua música e dança, apelidava-os de “gentes afortunadas”, expressão que se viria tornar o título de uma das obras de Hugh Tracey, musicólogo escocês que muito se debruçou sobre a música este povo (Rocha, 1986).
David J. Webster (2009), que fez trabalho de campo na terra dos Chope entre 1969 e 1976 (embora este trabalho tenha sido editado apenas em 2009), localizava-os no litoral-sul de Moçambique, mais precisamente nas margens do rio Inharrime, entre a baía de Inhambane e o rio, e que apesar de serem um dos grupos étnicos mais pequenos do país, a sua densidade populacional, em 1960, era das mais altas, entre 20-40 pessoas por quilómetro quadrado.


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1.1. Passado pré-colonial

Do seu passado pré-colonial, David Webster (2009) afirma que já desde antes de 1500, ocorreram fluxos migratórios, resultado de pressões de carácter económico e político, levando à miscigenação desses povos com os habitantes do espaço atribuído aos Chope. Estas mesmas dinâmicas terão levado a que este povo, com um passado fragmentar, do “género manta de retalhos”, desenvolvesse um sentimento de identidade nacional muito forte, reflectido na língua (XiChope), e na música, ambas muito diferentes das dos seus vizinhos Tsonga, Changana, e Tonga de Inhambane (Webster, 2009). A respeito das migrações, de acordo com Ferreira (1986), durante o século XVI, por um lado, “intensificaram-se as imigrações chonas-caranga, ao sul do rio Save, contribuindo para a formação de diversas unidades políticas de tipo estadual, dotadas de poder centralizado”, e por outro, tiveram origem os Bitongas nas relações que estabeleciam nos portos e ancoradouros naturais, na prática de actividades comerciais marítimas, na introdução de culturas de arroz de coqueiro, como exemplos do contacto com o exterior.

No século XVII, as populações menos unificadas da região entre o Limpopo e Inhambane, que compreende o território Chope, parecem ter sido invadidas e dominadas, por um curto período, por invasores do sul, mas esta ocupação não foi suficientemente para unificar politicamente esses grupos (Ferreira, 2009). No século seguinte, a esta região chegaram grupos de origem Venda e Lobedo, e apesar da falta de unidade política, os condicionamentos ecológicos parecem ter conduzido à homogeneização da cultura e da língua (Ferreira, 2009). Á mesma conclusão parece chegar Webster (2009), a partir de um excerto da tradição oral recolhida por Dora Earthy (1933), sugerindo que esta região possuía uma certa homogeneidade cultural, mas que politicamente se encontrava dividida em regulados autónomos.

A identidade Chope parece ter surgido como consequência das invasões angunes, no século XIX, perpetradas por três grupos Zulu que fugiam a Chaka (Webster, 2009). Não tem grande interesse descrever aqui o decorrer das invasões, mas é importante assinalar que desde a fuga dos primeiros grupos, liderados por Sochangane, Nxada, e Zwangendaba, combatem entre si, saindo Sochangane vencedor (Webster, 2009). Com a morte de Sochangane, em 1856, Mawewe e Mzila disputaram a ascensão ao trono do pai, sendo Mzila derrotado, mas “derrubando o seu meio-irmão alguns anos depois, com o auxílio português” (Webster, 2009). Mzila é sucedido pelo seu filho, Gungunhana, que decide mudar a capital do seu império para junto da fronteira dos Chope (Webster, 2009). Isto acabou por aumentar a frequência de incursões e pilhagens neste território, e sendo seguramente motivação para a sublevação deste povo em 1891 que, no entanto, acabou derrotado (Webster, 2009). A resistência era liderada por Binguane, responsável por unificar parte dos régulos Chope, contra os angunes (Ferreira, 1975). Esta resistência à violência acabaria por ser um factor de consolidação da identidade nacional de uma população com origens diversas (Ferreira, 1975). Os próprios invasores pareciam não procurar impor uma identidade “zulu”, pareciam não ter interesse em aculturar esses povos, apenas procuravam os seus recursos, pela pilhagem, facilitando que uma identidade própria se desenvolvesse (Webster, 2009). As incursões tem fim aquando da captura de Gungunhana, (Webster, 2009).

1.2. Contextualização sociocultural

Como foi referido, a unidade política entre os vários regulados é fraca, apesar de os mesmos se identificarem como pertencentes a um mesmo povo, a uma mesma identidade Chope. As interacções, quer de natureza política, quer de natureza social, ocorrem ao nível da família e da vizinhança (Webster, 2009). Nas palavras de Webster (2009), “os Chope não conceptualizam o seu parentesco de uma forma alargada”, talvez pelo seu passado fragmentar, e turbulento até. Neste sentido, a “vicinalidade”, o grupo de familiares próximos, e vizinhos, acaba por constituir um conjunto de interacção e entreajuda forte, que compreenderá seis ou sete domicílios (Webster, 2009). Estas relações implicam a troca e partilha de alimentos, por exemplo. Para além desta relação do indivíduo chope com os seus vizinhos, as relações de amizade também são importantes, que podem ir desde “conhecimentos pontuais”, a uma amizade muito forte, em importância semelhante aos laços de parentesco, designando esse amigo por ndoni (Webster, 2009). É habitual os indivíduos visitarem-se entre si, ou reunirem-se aquando da actuação das orquestras de timbila (que eram frequentes), onde se conversa, se trocam informações, e onde se bebe (Webster, 2009).

A troca de alimentos, muito pesa também na forma de ser dos Chope, em geral (Webster, 2009). A água de qualquer domicílio está disponível para que qualquer um se possa servir, e os alimentos são oferecidos pelas mulheres que trabalham nos campos, e a um nível mais formal, no domicílio oferece-se comida a qualquer um que sejas considerado mais do que uma simples visita passageira (Webster, 2009). Se alguém passar por um domicílio e gritar «gunzala», a “ética da partilha e da generosidade” obriga ainda a que alguma comida lhe seja oferecida (Webster, 2009). O que é curioso é que este grito, pode ter duas leituras: se for realizado por um amigo, vizinho, ou parente, a comida é oferecida de bom grado, como símbolo de uma relação longa e duradoura; se por outro lado, um estranho gritar «gunzala», este colocar-se-á numa posição subordinada à de quem oferece a comida, e podendo perder prestígio por isso (Webster, 2009).
Quanto aos meios seus meios de subsistência, destacam-se: a caça e recolecção, a agricultura e a migração para as minas do Transval (Webster, 2009). Em relação às primeiras, o cajueiro e a ucusu, de exemplo disto, sendo duas árvores das quais obtém madeira, frutos comestíveis, bebidas mais ou menos alcoólicas, e até uma substância usada para lavar (Webster, 2009). Consomem ainda folhas, raízes, trepadeiras, tubérculos e cogumelos, e ainda criam colmeias a partir de cascas de árvore, e fabricam tecidos a partir de fibras vegetais (Webster, 2009). As condições do solo e do clima são suficientes para se fazerem colheitas de milho, mandioca, amendoim, papaia, batata-doce, cabaça, abóbora, e ananás (Webster, 2009). A criação de gado está limitada aos caprinos e galináceos (ambos usados ritualmente em sacrifícios), pois a mosca tsé-tsé impede a criação de bovinos. A carne provém também da caça, que no entanto, segundo Webster (2009), os homens perdem demasiado tempo nessa actividade, se for tido em conta que o retorno não é muito significativo. Por estas razões, e apesar de a subnutrição ser quase inexistente entre os Chope, a carne é mais escassa e, por isso, muito valorizada (Webster, 2009). Este facto leva-nos a um outro ponto: as migrações param as minas do Transval. As migrações para as minas, são uma consequência das políticas coloniais portuguesas, que legislaram em Moçambique o impedimento de que mais de 7% de todas as actividades masculinas fossem realizadas junto ao domicílio, o que levou ao empobrecimento das actividades agrícolas, e da vida social em geral (Webster, 2009). Apesar de, no início, muitos terem partido em busca de trabalho, justificando a sua partida com a possibilidade de conseguirem recursos para comprar “boa carne”, a necessidade de uma maior força de trabalho, aliada a interesses políticos e económicos de Portugal, impuseram a obrigatoriedade de migrar (Webster, 2009). Este mesmo autor, advoga que a migração para as minas acabou por se tornar uma forma de iniciação secundária, onde, com o dinheiro conseguido, os rapazes poderiam pagar o preço da noiva, ou tornarem-se empreendedores comprando um arado e vendendo os seus serviços, por exemplo (Webster, 2009). As migrações para as minas acabaram assim por alterar e sedimentar nas actividades económicas e sociais dos Chope, de forma bastante evidente. No entanto, apesar de afastados das suas aldeias, em África do Sul, os jovens Chope manifestam a afinidade que tem pelos seus músicos, e as suas orquestras. São aliás, como foi já referido, a língua xiChope e a música orquestral Chope, que “cristaliza a sua identidade e cujas letras se referem frequentemente aos sentimentos nutridos no interior do grupo contra os que não lhe pertencem” (Webster, 2009). As músicas tocadas nas timbila, as letras e as coreografias, serão seguidamente abordadas.

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Muito interessante. Tanta informação! Obrigado por partilhar! 😃

Obrigado Pelo comentário! É para ler com calma... hahahahaha. Faltam duas partes!

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