De Pastores a Imperadores: As invasões Nguni no Sul de Moçambique




Introdução

Neste post e nos que se seguirão procurarei abordar aquele que se poderá considerar um dos mais importantes temas da história de Moçambique no decorrer do século XIX: as invasões Angunes (Nguni) e o império de Gaza. procurarei contextualizar este grupo étnico mais abrangente, assim como (algumas) das motivações que terão levado à sua expansão. O Sul de Moçambique, território vulgarmente compreendido entre o rio Save e as fronteiras no sul do país, será o espaço geográfico de referência, o palco de acção dos acontecimentos que aqui se procurarão expor. Os actores, para além de Sochangana, Mawewe, Muzila e Gungunhane, líderes Nguni que de uma forma ou de outra tiveram grande peso na dinâmica do império de Gaza, e ainda Chaka e os Zulu, os portugueses, e os povos que “naturalmente” ocupavam esta região, são dignos de referência para uma compreensão mais abrangente – se bem que por vezes resultará um tanto ou quanto superficial - sobre estes acontecimentos.

Os Nguni nos finais do século XVIII

O termo “Nguni” é, para Rita-Ferreira , referente a um conjunto de povos que ocupavam o sudeste africano, com uma cultura e língua semelhantes, que poderá causar a impressão de que se trataria de um grupo relativamente homogéneo, e que tal compreensão não é aceite na generalidade. No entanto o termo assume um carácter utilitário para aqueles que se pretendam referir ao seu conjunto .
A sua organização social, de carácter patrilinear, dividia-se em clãs, isibongo, cujos membros estavam proibidos de casar entre si . Esta proibição poderá ser entendida como uma forma de gerir as relações de aliança entre os diferentes clãs, permitindo uma certa manutenção da heterogeneidade nguni sugerida por Rita-Ferreira. A autoridade era assumida pelo induna vesigodi, oriundo do clã dominante de cada comunidade ou “distrito” independente, isigodi, forma do a partir de um conjunto variável de aldeias . À autoridade do induna sobrepunha-se a do chefe “monárquico”, inkosi, de todo um conjunto de “distritos”, isifunda . A independência entre os diversos isigodi implicaria, na opinião de Rita-Ferreira , uma certa atitude “democrática” por parte dos chefes, cujas decisões eram tomadas após a consulta dos conselheiros, dos tinduna e de outras personalidades influentes. Os súbditos podiam ainda, em caso de litígio, transferir a sua vassalagem para um outro chefe ou formar uma nova comunidade . Individualmente, a hierarquia era organizada por grupos de idade, que correspondiam a um “conjunto de varões da mesma geração que tivessem participado conjuntamente das cerimónias de iniciação” .
A economia, e num certo sentido toda a vida da população, encontrava-se alicerçada na criação de gado bovino, que por sua vez exigia terreno de pasto adequado, com um regime de chuvas suficiente e regular, onde a mosca Tsé-tsé e a tripanossomíase que lhe está associada fossem inexistentes . Estas condições encontraram-nas sobretudo junto à cordilheira de Drakensberg, que delimitava o seu território a sul-sudeste, até ao território Thonga a norte, fronteira esta que coincidia com os limites entre o território infestado e aquele liberto da mosca Tsé-tsé . Praticavam ainda a criação de “gado miúdo”, a agricultura, a caça e recolecção, realizavam trocas comerciais, nomeadamente com bosquímanos, trabalhavam o ferro, produziam olaria, cestaria, e talhavam madeira . A própria organização de cada povoação, uzumi, reflectia a importância que o gado tinha na vida das populações, pois o curral, uthango, ocupava o centro de cada aldeia, com as palhotas erguidas em seu redor . O número de cabeças de gado bovino que cada indivíduo “possuísse” acumularia valor ao seu estatuto social e influência política, e era com parte dele que pagava o lobolo à família da mulher com quem pretendesse casar . O pagamento do lobolo não estava isento de negociação, e representava uma compensação pela perda da mulher que depois de casada se deveria mudar para junto do marido e do seu clã . No caso de se tratar do casamento de um chefe, o lobolo seria pago pelo povo . O casamento poligâmico, neste caso a união de um homem com várias mulheres era permitido, mas estas ultimas diferenciavam-se por ordem cronológica, sendo a mais antiga aquela de estatuto mais elevado, e por isso, no caso da mulher de uma autoridade, os seus filhos constituir-se-iam como os legítimos descendentes de seu pai . O crescimento económico, demográfico e militar
Entenderem-se determinados aspectos da organização social, política e económica Nguni ajudará a compreender os acontecimentos de carácter expansionista que decorreram no século XIX . Como refere Rita-Ferreira (1974), no território que este grupo étnico mais abrangente ocupava, vagueavam grupos de caçadores-recolectores San (Bosquímanos) e de pastores nómadas Khoi-khoi (Hotentotes). Sobre os primeiros já foi referido que eram realizadas trocas comerciais, fornecendo carne de caça e produtos espontâneos como o mel, e recebendo leite, produtos agrícolas e protecção . No entanto estas relações não eram estáveis e absolutas. Na necessidade de os Nguni expandirem o seu território em busca de novos terrenos de pasto, os San e Khoi-khoi, estes últimos pastores eles mesmos, que cavalgavam bovinos, ofereciam resistência ao avanço Nguni . As rápidas incursões das referidas hostes, aliadas à ausência de rotas de fácil circulação, forçaram a uma certa independência entre as diferentes unidades políticas . A subjugação destes povos derivou aliás na assimilação dos mesmos, num certo sentido. Os homens nguni de maior poder económico, politico e militar, permitiram capturar ou pagar por mulheres destes grupos, que eram depois levadas para junto do clã do marido . Existe aliás um acentuado número de “cliques” na língua chi-nguni, característicos da linguagem dos Bosquímanos .
O aumento na necessidade de mais território pode ele também ser justificado, em parte, por um “crescimento demográfico de tipo explosivo”, exigindo mais espaço para os indivíduos e para a produção de recursos para os mesmos . Por um lado a já referida “aquisição” de mulheres de outros grupos étnicos permitiu a homens nguni um considerável aumento no número de descendentes, ou seja, uma população jovem . Por outro é de relembrar a salubridade do território em questão, livre da mosca Tsé-tsé, o que significaria uma taxa de mortalidade reduzida no que a este factor respeita, ao contrário da realidade de zonas adjacentes . A adicionar a esta conjuntura, o milho, introduzido pelos Portugueses, resultou numa fonte alimentar importante, que encontrou aliás, óptimas condições climatéricas para o seu cultivo . O milho era até armazenado no curral do gado, talvez por questões prácticas e funcionais, ou talvez porque o milho goza-se de um simbolismo importante, tal era a sua relevância económica .
As trocas comerciais na Baía de Lourenço Marques constituíram elas mesmas um factor que motivou, directa ou indirectamente, as invasões Nguni a sul do rio Save, quer na opinião de Rita Ferreira , quer de Malyn Newitt . O primeiro autor refere que os “reis-guerreiros Vangunes […] não hesitaram em reservar para si o exclusivo das trocas comerciais com o exterior”. Pelo controlo, pela força se necessário, do monopólio comercial com a Baía de Lourenço Marques, conseguiram acesso exclusivo a bens que jogam não só um importante papel na manutenção das relações entre indivíduos pela distribuição da riqueza, como permitem a sua (re)afirmação frente a outras etnias. Contribuiria isto para uma unificação política dos povos Nguni, que lhe poderia garantir a subordinação de grupos mais heterogéneos ou politicamente descentralizados . Newitt (1997) acrescenta que a partir de 1790 teve inicio um período de seca que em alguns casos se prolongou até ao século XIX, e que acabou por afastar o interesse dos comerciantes europeus, do território mais a norte da Baía. Estes últimos, caso dos portugueses, estabeleceram relações comerciais na Baía de Lourenço Marques, onde pagavam elevados valores, pelo marfim, por exemplo . Os Nguni por seu lado, possuíam mão-de-obra, provavelmente resultante da captura de prisioneiros nos conflitos que travavam, e do já referido incremento demográfico, na caça ao marfim .
Dois últimos factores a referir serão a reorganização militar e o domínio do ferro que, para Rita-Ferreira (1974), terão derivado dos Sotho que habitavam a área a noroeste dos Nguni. Ao nível militar consistia em e substituir as “escolas de iniciação” pelo alistamento obrigatório e organizar as classes de idade em regimentos militares, eficazmente empregues nos conflitos . No que respeita ao trabalho do ferro, este permitia o desenvolvimento de, entre outros utensílios, armas mais eficazes . A profissão de ferreiro gozava de elevado estatuto social, e a mesma era passada de geração em geração para um dos filhos varões .
Compreende-se assim um contexto de crescimento demográfico e económico, que numa espécie de efeito “bola de neve”, permitiria o aumento do poder militar e do poder económico. Garantir a soberania sobre o território, que se tornava cada vez mais escasso pelo aumento da população, contra possíveis migrações de povos afectados pela grande seca que ficou conhecida por mahlatule, e por outro lado, permitir a expansão, a captura de prisioneiros de guerra, e o monopólio comercial, podem entender-se as necessidades de elaborar uma força militar eficaz que se fazia cada vez mais possível pelo aumento da riqueza. Mas como foi dito anteriormente, a totalidade Nguni estava dividida em comunidades ou “distritos” mais pequenos e relativamente independentes . Se as trocas comerciais, os bens materiais exógenos como pulseiras de latão ou armas de fogo, permitiam a aliança entre determinadas forças políticas, também poderia despertar a inveja de outras. Os conflitos entre chefes de diferentes grupos Nguni serão frequentes como se constará pelos episódios históricos seguidamente relatados.

Fim da 1ª parte.

Sort:  

As a follower of @followforupvotes this post has been randomly selected and upvoted! Enjoy your upvote and have a great day!

Bom artigo! Obrigado por partilhar! :-D

Obrigado pelo comentário! Steem 4ever ;D

Ehehehe! Vamos lá a ver no que isto dá. Para já 90% a 95% dos votos que recebo são automáticos. Isto precisa de mais animação humana, sem dúvida. :-D

Posted using Steeve

Acho que a malta de Portugal deveria organizar um evento anual. Um meet up para nos conhecermos, trocar ideias, discutir estratégias e usos do Steem. Era muito interessante. E ajudava a cimentar a comunidade.

Ou pelo menos, a malta do Norte... que eu não sei se tenho paciência (nem tempo) para viajar lá para baixo para um evento desses. :-P

Posted using Steeve

Melhor ainda, visto que eu sou do norte Norte. A malta organizava pelo menos um almoço tarde fora e conversava.

Parece-me bem. Só aqui na zona de Porto / Vila do Conde, acho que já temos vários candidatos.

Vila do Conde era o Ideal! Uma cidade mais pequena, mais acolhedora. Tenho uma certa aversão a cidades "grandes"...

Congratulations! This post has been upvoted from the communal account, @minnowsupport, by Martusamak [Portuguese] from the Minnow Support Project. It's a witness project run by aggroed, ausbitbank, teamsteem, someguy123, neoxian, followbtcnews, and netuoso. The goal is to help Steemit grow by supporting Minnows. Please find us at the Peace, Abundance, and Liberty Network (PALnet) Discord Channel. It's a completely public and open space to all members of the Steemit community who voluntarily choose to be there.

If you would like to delegate to the Minnow Support Project you can do so by clicking on the following links: 50SP, 100SP, 250SP, 500SP, 1000SP, 5000SP.
Be sure to leave at least 50SP undelegated on your account.

Coin Marketplace

STEEM 0.33
TRX 0.11
JST 0.034
BTC 66579.21
ETH 3282.19
USDT 1.00
SBD 4.30