O Pereira da Caixa, fadista de Alfama (parte 1)- #in: O mapa de autoestrada

O meu pai era um homem complexo.
Austero, imbuído dos valores morais irrepreensíveis dos finais do século dezanove, autodidata de cultura geral assinalável e um virtuoso guitarrista na fadistagem de Alfama, dos anos quarenta.

Foi estroina na juventude, amante de galhofentas noites com a gente das artes e muito ciente na nobreza humana, onde quer que ela habitasse. Por isso se dava com o mesmo trato, fosse com o Secretário de estado, fosse com o motorista do serviço ou qualquer indigente que com ele se cruzasse.

O amor da sua vida foi a minha mãe, o que não impediu que ela o deixasse com dois filhos para criar, coisa que ele resolveu à custa de vários erros culinários sem gravidade e recompondo a vida num tardio casamento com a Dona Sãozinha (como era conhecida na Segurança Social), que entrou na nossa vida de forma tão amorosa como uma ameixa seca.

Apesar de não sair de casa, era um homem que sabia celebrar a vida e fazia tertúlias onde acorria a fauna mais estranha da cidade. Por lá passou o Duarte que tinha uma casa de frangos e manias de toureiro, o Falcão, fina e letrada presença mas furioso motociclista duma Vespa amarela que quase o matou em vários acidentes, o Castro, que, com o 25 de abril se veio a saber que trabalhava para a PIDE, o Chico-da-cana, que tocava um instrumento de sopro de sua manufatura, ou o Finuras, figura emblemática que pedalava muito hirto a sua bicicleta cromada pela Avenida Luisa Todi, de barba farta bem aparada e impecavelmente trajado do seu fato-macaco azul de operário fabril, abrilhantado por um lenço branco que despontava no bolso ao peito.

Além desta espécie de membros honorários, outras figuras pululavam estes serões, envolvidas nas conversas longas, debates, fados à desgarrada e ocasionais sessões esotéricas protagonizadas pelo Finuras, que garantia hipnotizar pessoas.

(continua)