O Pereira da Caixa, fadista de Alfama (parte 2)- # in: O mapa de autoestrada

O Senhor Pereira detestava tomar banho e asseverava que era um péssimo hábito que fazia muito mal às pessoas. Então os dias de seu épico banho eram calendarizados, muito negociados e ditados por um ritual complexo que envolvia instrumentos de temporização, toalha aquecida, tapete felpudo para os pés, certo sabonete e outras coisas que eu nem sei, porque era a dona Sãozinha que se encarregava afanosamente dessa ciclópica tarefa.

Apesar disso, apresentava-se sempre bem cheiroso, impecavelmente escanhoado e penteado, e tinha a sua elegância própria, feita invariavelmente de fato completo, com colete, camisa e laço, no Inverno, e envergando uma espécie de Guayaberas de manga curta que lhe davam um certo ar colonial, nas estações mais quentes.

Adorava ler e tinha um fraquinho pela instituição castrense, que exorcizava com um doméstico regime de quartel. E uma preocupação genuína com o bem-estar da minha mãe, que agitava os fígados da Dona Sãozinha e lhe castigava imerecidamente a estima e o seu afã de esposa e provedora.

Mas era um homem bom que se condoía com toda a espécie de sofrimento (à excepção do conjugal), o que justifica o seu horror perante a gorda oferta de olhos vivos e grande crista que lhe foi trazida à porta de casa, e que ele prendeu por uma pata a pastar nas traseiras do prédio, até que a vizinha do segundo andar, sabedora das lides do campo, se ofereceu para lhe torcer a goela. Mas não conseguiu tocar no prato, quando o animal chegou à mesa do jantar, num belo fricassé.

O seu maior legado foi mostrar-me a simplicidade da vida, o foco no que realmente importa, a resignação inteligente e a beleza dos contrastes. Tinha uma sabedoria clarividente, despojada e honesta, da alma humana, o que o fazia ver muito além e relativizar todas as tragédias com britânico humor, por vezes cáustico.

Por tudo isso, creio que teria gracejado com o despropósito da situação em que que me despedi dele pela segunda vez, pois estava todo desarrumado dentro de um tabuleiro de plástico empoeirado e eu agachei-me, pousei os dedos ao de leve no seu crânio que parecia estranhamente pequeno, e fiz-lhe festas. Senti a estranheza daquela sensação de cumplicidade que me invadiu e parecia destoar da sua gritante inexistência, mas isso ligou-nos duma forma que só ele teria entendido.

Anos mais tarde, quando a Dona Sãozinha se cansou dos tremores que lhe causava o pote das cinzas e mo despachou para as mãos, eu tinha aterrado em Lisboa e alugado um carro para ir de férias para o Algarve. De modo que estávamos junto à viatura entrouxada com malas e passageiros, a opinar sobre o lugar adequado para o transportar, quando reparei no olhar de negativa súplica da minha mãe, o que me fez decidir imediatamente que o melhor para ele seria viajar entre os pés da sua antiga amada. Assim arrumei o assunto com um sonoro - “afasta as perninhas que o Senhor Pereira vai entrar” - que quase me deitou ao chão de tanto rir até às lágrimas, ante o sorriso descaído e o olhar horrorizado de todos. Mas só eu sei que as suas cinzas se agitaram de riso também.

E foi assim que sem hipócrita cerimónia e em alegre camaradagem, o Senhor Pereira foi connosco de férias, aos solavancos e por fim a rolar na bagageira junto aos sacos do Pingo Doce (coisa que eu estou segura que o terá deliciado), até as suas cinzentas férias acabarem no cimo dum armário, em casa da minha mãe em Sesimbra, à espera que me despeça dele pela terceira vez.

Se gostou desta crónica, pode ver a 1ª parte aqui:https://steemit.com/

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