A dádiva de viver além de subsistir

Uma pessoa muito rica pode até pensar em finanças e contas muitas vezes por dia, dependendo da relação que ela tem com o dinheiro. Mas se ela não pensar nisso, tudo bem, ela continua rica e tem o que comer, o que vestir e como se divertir o ano inteiro.

Uma pessoa com renda média não pode se dar esse luxo. Pelo menos uma vez por mês ela precisa sentar e fazer suas contas, mas sabemos que é bem mais de uma vez por mês que isso acontece. De qualquer forma, se ela não pensar nisso por uma semana inteira, continua a ter o que comer, o que vestir e onde morar.

Uma pessoa pobre precisa pensar em saldos e boletos todas as semanas, e buscar sempre uma forma alternativa de aumentar o rendimento mensal, caso contrário suas contas não vão bater. Uma faxina, um conserto, uma encomenda da avon, um terreno para limpar. Se ela não pensar nisso todas as semanas, atrasa o aluguel e no fim do mês come o que der, e se não der tem que pedir cesta básica na assistência social.

Uma pessoa miserável precisa pensar em como ganhar dinheiro praticamente todas as horas da sua vida. Um único dia que ela deixa de pensar nisso, passa fome mesmo. De doer o estômago.

Deve ser horrível não ter tempo para pensar em outras coisas. Dormir e acordar (se é que dorme), pensando em como vai ser mais um dia tentando não morrer de fome.

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Passar tanto tempo se preocupando em sobreviver drena toda a energia, o potencial e a motivação de qualquer ser humano. A saúde mental é diretamente afetada, podendo diminuir a manifestação de comportamentos positivos e produtivos (em relação a si mesmo, ao outro e ao mundo).

Todas as vezes que passo por um catador de latinhas, um guardador de carros, um vendedor de sinaleiro... imagino como, para eles e tantos outros, todo dia é exatamente igual ao anterior, sem nunca poder se dedicar a algo diferente e provar a vida de um outro jeito, em como todo dia suas metas e os seus medos são os mesmos... conseguir dinheiro para subsistir mais um dia. Conseguir comprar um saco de arroz, uma caixa de leite, pagar um boleto de água que mesmo com tarifa social ainda sai caro para as suas condições, ter saúde para andar porque não tem dinheiro pro ônibus ou até poder comprar um remédio sem o qual se pode morrer.

Todas as vezes que penso no quanto de tempo eu tive e tenho para me divertir, criar, procastinar, aprender, despreocupar, construir, inventar, viajar, experimentar, recomeçar, refletir, contemplar, sentir, conversar, passear, estudar, planejar, sonhar, amar... eu penso no quanto eu devo a todas essas pessoas, não por moralismo, ideologia ou sei lá o que. Mas pelo simples fato de que dependemos um do outro, de uma forma ou de outra. Às vezes numa interdependêcia muito mais forte do que podemos supor ou até do que gostaríamos de admitir, em alguns casos.

Mesmo que esmorecidos, impotentes e estagnados num mesmo dia que se repete há tantos anos, são eles que sustentam majoritariamente nossa máquina estatal e todos os benefícios que porventura eu usufrua (vide sistema tributário). São eles que se sujeitam ao trabalho indecente e ao pagamento imoral. São eles que tornam possivel, em certa medida, que eu possa viver tantos dias diferentes uns dos outros.

Dádiva é dívida.