A morte do Leiteiro – Uma leitura

in #pt5 years ago

A morte do Leiteiro – Uma leitura

Um dos poetas da Literatura Brasileira que mais admiro é Carlos Drummond de Andrade.
No seu livro, A rosa do Povo, editado em 1945, Drummond encerra uma espécie de Trilogia de poesia engajada, iniciada nos livros “Sentimento do Mundo”, de 1940 e “José”, editado em 1942.
Em “A rosa do Povo”, de 1945, Drummond levanta o tema armamento, já em 1945...
Obviamente, pela posição mais à esquerda, no que diz respeito ao posicionamento político, Drummond atenta para o fato de um leiteiro ter sido assassinado no exercício de sua labuta diária justificada pelo fato de o dono da propriedade que dormira e ouvira o barulho feito pelo leiteiro, acabara assassinando o leiteiro no exercício de seu trabalho.
Ressalto o posicionamento do poeta, pois fica clara a defesa do desarmamento do cidadão, ao passo que no poema, de certa forma, narrativo, conta a estória do leiteiro que é assassinado enquanto entregava o leite.
No entanto, mesmo depois de tanto tempo, percebemos dentro do poema algumas falas e jargões presentes em nosso atual contexto e cotidiano...Boa leitura.

“Há no país uma legenda / que ladrão se mata com tiro”

Esses versos são, praticamente, o “Bandido bom, Bandido morto”, de hoje...
Isto é, essa ideia já está há muito tempo no cerne de nosso povo. Essa ideia da violência contra a violência...
No entanto, não podemos esquecer do direito do indivíduo a sua defesa e defesa de sua propriedade. O poema de Drummond é sim, verossimilhante, no entanto, também não podemos esquecer que o poeta defende o desarmamento, logo, de certa forma, imputa a morte do leiteiro ao fato de o dono da propriedade ter uma arma em sua casa.

“Leite bom pra gente ruim”

Neste verso Drummond aponta justamente o fato de o leiteiro ser o personagem do bem e o dono da propriedade o personagem ruim...Apresenta uma dicotomia e mais uma vez, a defesa do desarmamento, pois o dono da propriedade seria imputado pela morte do leiteiro, pois guardava em sua gaveta, uma arma.

“Sem fazer barulho, é claro / que barulho nada resolve”

Nestes versos, Drummond deixa claro mais uma vez sua posição, enfatizando que em outras palavras, violência não resolve...

“O revólver da gaveta/ saltou para sua mão./Ladrão? se pega com tiro.”

O poema encerra com uma cena significativa...O vermelho do sangue do leiteiro e o branco do leite enlaçados e formando o tom da aurora...uma possível referência, ao meu ver, à esperança na aurora de um novo dia....

A morte do Leiteiro

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

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