Diarios da Estrada 019 - O Coração do Povo Cigano

Acordei bem cedo, mas sem nenhum motivo aparente. Demorei um tempo para lembrar onde eu estava (viver na estrada tem dessas, são tantos lugares que as vezes você acha que dormiu em um lugar e acordou em outro). Lembrei que tinha passado a noite no templo e ficaria ali durante o dia para o ritual noturno. Não havia ninguém acordado ainda, então me dirigi até a cozinha para preparar meu café da manha. No caminho cruzei com 3 gatos que moravam ali, 2 pretos e um rajado. Dei bom dia a eles e segui meu caminho. Chegando na cozinha mais 4 gatos lá, 2 brancos e 2 pretos (por um segundo pensei ué, mas eu acabei de cruzar com 2 gatos pretos como eles já estão aqui?) Tomei meu café e sai lá fora, onde vi mais 5 gatos (não vou lembrar a cor de todos) e achei aquilo muito estranho. De onde estariam brotando tantos gatos?

Resolvi caminhar pelo espaço para conhecer melhor, tinha a capela ao lado da casa com as imagens, um grande abacateiro com bancos em baixo, o espaço da fogueira onde aconteceria o trabalho aberto, e mais um tanto de grama e arvores. Era um espaço bem bonito e bem cuidado, e eu me senti muito bem ali. Sentei em baixo do abacateiro e resolvi meditar um pouco. Sai da meditação ao ouvir a Flavia me chamando, e fui conversar com ela. Primeira coisa que falei foi dos gatos, e ela me explicou que os gatos são guardiões e transmutadores de energias, e ela tinha 19 gatos morando no templo... 19???? E ela sabia o nome de cada um!!! Nunca tinha tido contato com gato então pra mim aquilo era uma loucura...

Contei como tinha sido minha noite, como estava me sentindo e que estava animado para o trabalho da noite. Então começamos a arrumar o espaço, fui rastelar todas as folhas, varri a capela, limpei e alimentei os gatos, não sei porque estava feliz demais de estar fazendo aquelas tarefas simples, mas que de alguma forma me pareciam tão naturais. Terminamos no meio da tarde e almoçamos, agora era só esperar dar o horário do ritual e puro sucesso.

Anoiteceu e começaram a chegar pessoas. Não conhecia absolutamente ninguém, mas fui recebendo como se fossem família. Abracei a todos que chegavam, me apresentava e eles estavam felizes de eu estar ali. Mais uma vez fui preenchido com um sentimento de felicidade extrema de estar ali, com aquelas pessoas, e ao mesmo tempo uma energia muito familiar. Então ouvi uma conversa que a pessoa que normalmente fica na fogueira não poderia ficar pro trabalho e não tinha mais ninguém para fazer isso. Entrei na conversa e falei "Eu manjo de fogo, posso ficar na fogueira"

O trabalho começou e eu super ultra mega preocupado com a fogueira. Não entrei na força em momento nenhum, ajudei outras pessoas em momentos de dificuldade mas sempre de olho na fogueira, para deixar um fogo alto, iluminando e aquecendo bastante. Foram passando os portais, eu fui consagrando mais, e nada da força abrir, meu pensamento estava totalmente na fogueira. Então o ritual acabou e fomos sentar para partilhar nossas experiencias. Eu senti do lado da Flavia e ela incorporou o Cigano Pablo para ouvir de dar feedback das questões.

Na hora que o Cigano chegou eu estourei na força de sair do corpo. Não entendia nada do que estavam falando, via cores, mandalas, estrelas, meu corpo parecia que ia explodir de tanto amor, e um pedacinho da minha mente preocupado com o que (ou como) eu ia falar na minha hora da partilha. Por sorte a roda começou pelo lado oposto de que eu estava então eu seria o ultimo a falar. Mas ao mesmo tempo eu seria o ultimo a falar! E se eu falasse merda? E se eu não conseguisse falar? E se...

Quando percebi já estava na pessoa ao meu lado partilhando e eu não tinha ideia do que iria dizer. Quando ela acabou e o Cigano olhou para mim, senti um calafrio correr minha espinha de cima a baixo. Então ele anunciou "O menino vai partilhar em particular comigo na capela, todos vocês fiquem a vontade" E se levantou. Com muito esforço eu levantei também e acompanhei ele até a capela, onde nos sentamos e começamos a conversar. Por incrível que pareça eu consegui falar e bem, expressando tudo que tinha acontecido durante o dia. Ele me ouviu atentamente e deu uma boa risada:

"Sim menino, você se sentiu assim porque está em casa. Você é Cigano e reconheceu sua tenda, seus irmãos e irmãs. E passou no teste que eu te coloquei, que decidi aplicar para ver se você poderia mesmo ficar aqui comigo esses próximos meses. Não pense que qualquer um poderia cuidar de uma fogueira cigana, pois ela é o coração do povo! E você cuidou com muito amor e zelo, então o povo cigano te recebe de braços abertos"

Ele me explicou como antigamente toda caravana se reunia em torno de fogueiras toda vez que paravam a viagem, como tudo sempre aconteceu ao redor das fogueiras: casamentos, funerais, acordos, batismos, todo cigano ama a fogueira e ela retribui esse amor. Quando ele terminou de falar eu tinha os olhos cheios de água, uma felicidade inexplicável tomou conta de mim e eu dei minha resposta: Sim! Eu ficarei esses próximos meses aqui com vocês, porem essa semana tem a Convenção Brasileira de Malabares e eu vou apresentar e dar oficinas lá. Posso vir semana que vem? (agora vejo como eu queria mas tinha medo de realmente me encontrar)

O cigano falou que tudo bem, e me esperaria dali uma semana...