Frio, caminhada e fogueira

Um pequeno relato sobre uma caminhada pelos trilhos com fogueira, pinhão e vinho.

Era um domingo frio e cinzento após vários dias de frio relativamente intenso, chegando quase a temperaturas negativas. Para mim, um momento perfeito para esboçar uma pequena aventura. Convoquei alguns amigos para que saíssemos de tarde e fizéssemos uma caminhada até um dos locais usuais onde nos excluímos dos conglomerados da civilização. Infelizmente, a adesão foi pouca entre os convocados, mas, de última hora, conseguimos fechar um grupo com três cabeças.

O combinado foi de se encontrar em frente a um mercado ainda na cidade e partir a pé às 17 horas seguindo o nosso costumeiro caminho nos trilhos desativados de trem que outrora mediavam o transporte de cargas entre São Paulo e Rio Grande do Sul. Nós, no meio desse caminho, entre Santa Catarina e Paraná, dispúnhamos de quilômetros e mais quilômetros de trilhos abandonados cercados por morros e florestas ermas, passando por pequenos povoados e cruzando longos túneis escuros onde o único som era o constante gotejar de infiltrações da umidade. Considerava isso quase como benção.

Carregando uma garrafa de vinho colonial e um quilo de pinhão para assar nas brasas, seguimos enquanto o dia lentamente desistia de existir. Nós, bem agasalhados, íamos pelos trilhos, sentindo o frio aumentando e ao mesmo tempo nos esquentando pelo constante exercício de caminhada. A paisagem era serena, embora um tanto morta e cansada pelos tons acinzentados e apagados que coloriam o mundo naqueles momentos.

Foi uma hora de caminhada desde o ponto de encontro até o local desejado. Quando chegamos, a noite já tinha tomado conta de tudo. O local, chamado carinhosamente por nós de Árvore da Vida em referência a uma ameixeira sob a qual nos reunimos, ficava pouco depois do segundo túnel desativado que passávamos. No túnel, a escuridão própria dele já fazia companhia à escuridão lá de fora. Chegando ao local desejado, começamos a providenciar uma fogueira. Felizmente, parte da estrutura do abrigo e da última fogueira que fizemos ali ainda estava mantida. Ou seja, o trabalho da fogueira foi em muito facilitado, pois já havia bastante lenha disponível.

Com um pouco de dificuldade em virtude da umidade, conseguimos acender uma fogueira generosa para assar os pinhões e nos fazer companhia. Estávamos todos bem agasalhados e até nossas balaclavas levamos. Porém, uma coisa que dava todo um tom de inverno para o evento foi o fato de termos encontrado durante todo o caminho e na própria localização da árvore da vida, grandes quantidades de cogumelos do tipo amanita muscaria. Esse cogumelo, típico de regiões temperadas, cresce nas florestas de pinheiros quando as temperaturas são frias. Na nossa região, o clima frio é bem propício para o crescimento do fungo no outono e no inverno. Juntando as condições climáticas locais à extensa propagação de várias espécies de pinus (pinheiros norte-americanos geralmente), obtêm-se os fatores necessários para o crescimento destes famosos cogumelos do Mário ou dos contos de fada. Além de tudo, os amanitas, se secados corretamente, podem ser ingeridos e conferir ao usuário poderosos efeitos alucinógenos. Em práticas xamânicas siberianas e de todo o Hemisfério Norte, o emprego do cogumelo é evento comum.

Por fim, com a fogueira encaminhada, abrimos o vinho e colocamos os pinhões para assar na brasa da fogueira. Enquanto bebíamos e esperávamos o pinhão, íamos conversando das mais diversas coisas. Nossos tópicos transitaram entre filosofia antiga e cristã, histórias de quartel de um dos membros, as deficiências do homem moderno, sobrevivencialismo, a relação entre ficção e tecnologia e até falamos sobre os argumentos em prol da existência do lendário sasquatch em florestas norte-americanas.

Sempre ouço de mulheres que elas não entendem bem por que conversamos certas coisas; parece que, quando os homens se reúnem, eles decidem resolver os problemas do mundo e dar um parecer técnico sobre cada pequena coisa. Em boa parte do trajeto, por exemplo, gastamos muita energia discutindo sobre a hipótese de a prefeitura estar pretendendo reativar os trilhos, pois vimos um carro de manutenção de trilhos numa vila e também vimos uma boa parte do caminho roçado e com barro retirado dos trilhos. Porém, na parte próxima à cidade não havia nada disso. Então começávamos a ponderar diversas possibilidades, assim como fatores técnicos que apoiavam uma ou outra hipótese. Uma amiga minha veria uma conversa dessas sobre um tema tão "irrelevante" e diria que não entende nós, homens. Ela sempre comenta sobre como podemos passar horas discutindo animadamente sobre assuntos assim ao mesmo tempo em que nem sabemos como o amigo se encontra em relação aos seus sentimentos, trabalho, família e outras coisas. Ao menos em nosso grupo, era uma observação extremamente válida.

Outro tema que falamos bastante foi sobre a possibilidade de abandonar o sistema ao qual somos submetidos para viver uma vida autossuficiente junto à natureza. Então, inspirado pelo Unabomber, falei sobre como o sistema já se tornou uma coisa impessoal, que não é necessariamente governado por pessoas puramente más tomando nossos lucros e nossa energia para fins próprios, mas que é uma entidade autorregulada – stand alone complex! – que, utilizando das pessoas, fomenta o próprio crescimento monotônico rumo ao infinito. O sistema demanda do homem que alimente ao sistema e que nos inclua nisso; liberdade seria depender de si mesmo e das próprias capacidades para manter a existência. E nisso fomos muito longe.

Tendo acabado o vinho e o pinhão, mesmo que a fogueira ardesse em toda sua glória, perto das dez horas decidimos voltar, pois segunda-feira seria um dia ocupado para todos e ainda teríamos mais de uma hora de caminhada até nossas casas. A volta foi muito mais rápida. Sem distrações da paisagem, pois estávamos no escuro total, focamos a visão apenas nas nossas lanternas que apontavam para os dormentes do trilho. Então, passo após passo, de maneira muito rápida, íamos avançando na escuridão, sem dar conta do que havia dos nossos lados e descansava na escuridão. Seguíamos rapidamente. Logo chegávamos ao povoado e vários cachorros latiam para nós, provavelmente acordando algumas pessoas. Um deles, bem daquele tipo perdigueiro sorrateiramente chegou até nós, mas não fez nada, inclusive deixou que o agradássemos.

Das profundezas da deepweb

Pelo nosso passo acelerado, chegamos ao destino com meia hora a menos em relação à ida. Realmente, a volta é mais rápida. Na cidade, uma cerração densa cobria as ruas e as casas. Voltávamos ao ambiente moderno e as conversas já mudavam de natureza. Deixávamos para trás a profundidade convocada pela imersão na mata e ficávamos mais mundanos. Mas logo era hora de nos despedir e de idealizar outra aventura. Acendíamos nossos cigarros, nos despedíamos e no outro dia cada um começava outra semana.

Mais postagens sobre acampamentos e experiências na natureza!
Acampamento na Pedra da Tormenta | Como criamos um Matoclube | Sobre um passeio e o espírito dos acampamentos | Um passeio matinal de outono | Uma caminhada na Sexta Feira Santa | Uma noite de outono na floresta | Uma tarde quente no Morro da Antena | Vêm as brisas de outono