Trânsito motonáutico . #in: O mapa de autoestrada

                           Artigo 3.º
                     Liberdade de trânsito                                 

1 – (…)
2 - As pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis.
3 – (…)
4 – (…)

~~
O Luis entrou e saíu da minha vida em marcha lenta, de olhar caído e resignação corpulenta.
Tranquilo e paciente, sabia saborear o nada como ninguém, e foi do nada que nos conhecemos na pastelaria Biarritz, numa troca de olhares ligeiramente faiscante que se repetiu por alguns dias até ele vencer a timidez e vir perguntar se o jornal pousado na mesa me pertencia.
Quando reparei na sua fixação embasbacada há vários minutos na mesma página, decidi facilitar-lhe a vida com um “até amanhã” sorridente, que ele soube aproveitar, pois no dia seguinte tomou café na minha mesa e à noite fomos ao cinema.
Era louco por desportos náuticos e tinha um indisciplinado cabelo ondulado que não combinava com o visual queque blasé de velejador apreciador dos gins de fim de tarde nas marinas de Saint-Tropez.
Tinha um LinkedIn do tamanho do mundo e o facebook abarrotava da sua presença sorridente em todo o canto em que havia competições de motonáutica, invariavelmente com os crachás da organização, distribuindo taças e diplomas em bonacheiro tu-cá-tu-lá com os pilotos da moda e as meninas apetitosas que ornamentam os eventos.
Havia nele qualquer coisa que me fascinava e ficou por definir, mas que atribuo à paz que exalava, ao trato doce e uma certa fragilidade que parecia mendigar colo a todo a hora. E eu dei-lhe muito colo, muito tempo e muito pensamento.
Era extraordinariamente meigo e gostava de estarmos numa qualquer esplanada à beira-rio, de mãos dadas, simplesmente a olharmo-nos ao por do sol ou a conversar até não restar voz. E depois escapávamos divertidos para um motel a caminho do Guincho, onde gozávamos com a sua burlesca decoração de espelhos, almofadas aos corações, luzes cor-de-rosa e os ridículos amenities compostos de espumante de marca branca e chocolate kit-kat, fornecidos gratuitamente com o fortuito requinte de uma janelinha giratória que garantia duplo anonimato e por onde, a pedido do freguês, também passava sorrateiramente toda a sorte de produtos essenciais ao vício e ao pecado.
Era gestor de topo de uma grande empresa alemã, colecionava cursos e pós-graduações e viaja por todo o mundo com frequência, por isso andava sempre cansado. E eu também me cansei de atravessar o Atlântico para revisitar a sua invariável indecisão sobre o que queria de nós.
Um dia estimei-me mais, fiz uma esfoliação de corpo inteiro, pedicure, maquilhei-me esmeradamente e despedi-me do Luis, que Deus o tenha pela Malásia, Istambul Abu-Dhabi e todos os périplos que tais, e fiz-me à estrada, pensando que era tempo de mudar de direção.

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