★★★✰✰ ‘Diamantino’, genialidade, populismo e travestismosteemCreated with Sketch.

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Diamantino Matamouros, interpretado por Carloto Cotta, é o orgulho de Portugal. É também um jogador de futebol, o melhor de sempre. Diamantino, realizado por Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, inicia-se precisamente com uma pequena romagem ao cérebro deste futebolista, mais especificamente, o que este pensa ou imagina enquanto está dentro do campo. Ao mesmo tempo que as suas fintas vão sendo demonstradas na tela, ele próprio, um narrador bastante interventivo, conta o momento em que o seu pai o comparou a Michelangelo, o pintor do teto da Capela Sistina, e afirmou a tendência ancestral das massas para se dirigirem a catedrais semelhantes, pois era daí que extraíam a sua fé. Agora, segundo a figura paternal, essa fé é obtida em estádios de futebol, funcionando os pés do filho Diamantino como um novo objeto de culto. O problema é que dessa viagem à mente do génio resultam cachorrinhos felpudos e uma neblina cor de rosa que se materializam na sua visão, ao mesmo tempo que este dribla os seus adversários e entusiasma milhões de admiradores pelo globo fora. Por outras palavras, a mestria do jogador deriva da sua imaginação fértil e errática, quase um transe lunático, e não da sua inteligência ou know-how. No fundo, Diamantino não sabe bem o que faz, é uma espécie de Forrest Gump do desporto-rei. E tudo bem. Há quem diga que Van Gogh visualizava a paisagem que o rodeava de forma diferente do ser humano comum, o que lhe permitia pintar duma forma única, ou que o economista John Nash recebia as suas fórmulas matemáticas de amigos imaginários que o acompanhavam diariamente – cada qual com a sua inspiração ou, muitos dirão, com a sua loucura. Não obstante, importante para a narrativa é que Diamantino é um lerdo, ou melhor, um indivíduo adulto que pensa e se comporta como uma criança, sem que nele possa ser encontrada uma noção exata de como o mundo funciona – ele apenas sabe jogar à bola, sendo que até esse talento nasce aparentemente da volubilidade da sua mente. Sem que tal pareça um ataque, existe uma seta apontada para a debilidade duma sociedade onde dar chutos numa bola, por mais bem dados que sejam, é mais valorizado do que quase tudo o resto: qual é a contribuição intelectual ou cultural do jogador de futebol? Não podemos nós andar a idolatrar e celebrizar em demasia certas classes? E deverá o melhor jogador de futebol do mundo ser conotado de “génio”, “deus” ou “extraterrestre”, mesmo que nunca tenha provado a sua competência em qualquer outra matéria? Na incorporação destas e doutras ideias, a interpretação de Cotta é fenomenal, conseguindo este, ao mesmo tempo que produz uma mistura silvestre entre o sotaque madeirense e açoriano, transmitir uma enorme carga de vulnerabilidade à personagem que, no fundo, não passa dum rapaz extremamente ingénuo e bondoso. Fulcral nesta caricatura é a aproximação à figura de Cristiano Ronaldo, assim como ao imaginário que circunda o jogador internacional. Desde os placares publicitários com Diamantino em cuecas, passando pelo pai solteiro, interpretado por Chico Chapas, e pelas irmãs gémeas, interpretadas por Anabela e Margarida Moreira, até aos conceitos inerentes à imagem de “melhor jogador de futebol do mundo”, muitas das cenas iniciais são destinadas, entre outras coisas, a criar uma ligação intrínseca entre a noção de genialidade ou celebridade, a pessoa que executa um ofício de forma quase perfeita, e o impacto que esta mesma excelência, ou a exploração mediática dela, pode ter na sociedade: o futebol faz o planeta girar ou, como diz uma das personagens, “é o ópio do povo”.

Pode dizer-se que a vida de Diamantino muda quando este, a banhos no seu iate de luxo, se depara com um barco de refugiados, acontecimento que é usado para catapultar o filme para o panorama político e social atual, mesmo que a ação decorra numa realidade alternativa, um Portugal semi-monárquico a fazer lembrar as criações lo-fi do cineasta Guy Maddin: existe uma série de referências realistas ao século XXI, um Samsung Galaxy S9, por exemplo, assim como uma pinga de retrofuturismo. A temática dos refugiados, além de funcionar como elemento ácido e contrastante, arremessando o espectador da pura luxuosidade para uma situação de miséria e tristeza, dá o mote para uma intriga com elementos satíricos e parodiantes, com ramificações indiretas para temas tão fraturantes como a eleição de Trump, o Brexit ou os movimentos nacionalistas. Tudo isto porque, numa hipótese praticamente orwelliana, o futebolista é utilizado pelo governo numa experiência não muito misteriosa com o objetivo de influenciar o povo a tomar decisões protecionistas, xenófobas até. É, portanto, executada uma interligação entre os conceitos de celebridade e populismo, com um claro piscar de olho aos movimentos políticos que, nos tempos que correm, se têm aproveitado das mesmas técnicas utilizadas pelas celebridades, ou da imagem das mesmas, para chegar ao eleitorado: o que aconteceria se, de repente, Cristiano Ronaldo ou alguém com semelhante status, apoiasse um dado movimento político? Pegando no ingénuo Diamantino, e se esse alguém, apesar de ser famoso, influente e objeto de culto, for desprovido das faculdades mentais consideradas normais ou, simplesmente, não tiver discernimento? Contudo, se bem que pegue em várias questões modernas duma forma ambiciosa e original, pode considerar-se que muitas das ideias ficam por ser devidamente exploradas, quase como se ao filme faltasse uma meia-hora extra onde seriam navegadas as consequências dos eventos demonstrados. No meio da abordagem algo kitschiana, caracterizada pela exploração de objetos vulgares e baratos que copiam referências da cultura considerada erudita sem atingirem o grau de qualidade dos originais, seria de esperar um tipo de filmagem extravagante ou destoante da maioria dos projetos. Porém, esta, levada a cabo por Charles Ackley Anderson, é, em vários aspetos, bastante tradicional, a fazer lembrar o cinema mainstream de Hollywood, o que até coincide com a possível intenção de dar um visual mais pop à obra. Há que apontar também alguma falta de ritmo ao segundo terço do filme, registando-se uma suspensão dos momentos cómicos que se consagraram na fase inicial, ficando tudo entregue a um jogo de espiões que, intencionalmente ou não, roça o cinema trash ou um conto de fadas negro a fazer lembrar a simplificação do Bem e do Mal dos irmãos Grimm, graças às irmãs gémeas, duas personagens de sentido único, que funcionam como vilãs.

Todavia, o momento mais político do filme não reside na exposição dum conciliábulo com tendências neofascitas ou saudosistas - de destacar a referência ao rei D. Sebastião -, mas sim na desconstrução ou quebra cómica dum conjunto vasto de estereótipos sexuais. Esta mineração da identidade sexual é possível devido à cisma de Diamantino com adotar um refugiado, que acaba por ser disponibilizado por Aisha, interpretada por Cleo Tavares, uma agente secreta lésbica que infiltra o dia-a-dia deste fingindo ser um adolescente refugiado chamado Rahim. O futebolista passa então a conviver diariamente com uma mulher disfarçada de homem. Estando-se perante uma clássica narrativa de enganos, com uma vénia às comédias românticas dos anos 40 da autoria de Preston Sturges ou Frank Capra, é de louvar a forma singela como a aproximação ao travestismo e, perto do fim, à androginia é realizada duma forma aberta e expansionista, negando o típico modelo fechado em que o travesti apenas tem um fim cómico, exposto geralmente ao ridículo. Como tal, existe uma mistura indecifrável, quase esquizofrénica, entre os teoremas do cinema queer e um conjunto de clichés típicos do mais banal e expectável romance com laivos de melodrama ou telenovela, havendo via aberta para referir as paródias sobre troca de géneros da autoria de Blake Edwards. **Diamantino **é, portanto, um filme otimista que, recorrendo à sátira, paródia e a um certo ficcionismo distópico, toca no lado mais negro da nossa sociedade, sem medo, sem receio de ferir suscetibilidades. E, claro, compensando alguns momentos menos bem conseguidos, o que de mais extraordinário tem é a capacidade de açoitar o “politicamente correto” duma forma praticamente inédita, deixando que o espectador vá caindo do seu pedestal moral - “será que é correto rir do androginismo?” -, até somente sobrar uma experiência empática e refrescante.

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