Sozinho estou, mas sozinho não permanecerei | Memórias de um historiador feat. Christine de Pizan

in #pt5 years ago

capa
barra_azul_escuro
Imagens: Christine de Pizan Digital Scriptorium | Edição: Canva by @LeodeLara
barra_azul_claro

“...Seulete suy a huis ou a fenestre,
Seulete suy en un anglet muciée,
Seulete suy pour moy de plours repaistre,
Seulete suy, dolente ou apaisiée,
Seulete suy, riens n'est qui tant me messiée,
Seulete suy en ma chambre enserrée,
Seulete suy sanz ami demouré...”

(PISAN, 1886, p. 12.)[1]


Que os textos deixados por Christine de Pizan são fontes riquíssimas para variados temáticas de múltiplas áreas do conhecimento, eu diria que não há como duvidar. No entanto, ninguém me disse que seria um ofício descomplicado examinar suas (inter)ações e pensamentos nas evidências que sobreviveram aos séculos em seus manuscritos. Percebo, nessa etapa de minha jornada histórica, que há um denso nevoeiro para quem decide investigar os contornos que estabeleceram as querelas de Christine de Pizan junto às Letras, a Fortuna e aos confrontos que passara junto com o reino da França. O esforço de me aproximar dos limites, que denomino Espaço de Expressão, tornam-se a cada dia uma tarefa hercúlea. Mesmo sem linhagem mítica ou conselhos das divinas Damas, de Fortuna ou de Palas, Atena, Minerva ou qualquer outro nome que a tenham dado para aumentar a disseminação de conhecimento no mundo antigo ou para tentar confundir aqueles que sabia ver a sapiência nos ensinamentos e práticas das mulheres e figuras femininas.

Sozinho não estou, nem sozinho quero permanecer, a contrário de Christine de Pizan, em Seulete suy sanz ami demourée, um de seus poemas na última década do século XIV. Jamais estamos sozinhos nessa jornada, ainda que o contexto se apresente assim em algumas ocasiões. Ainda assim, me perco em devaneios nas inúmeras possibilidades de se realizar a presente pesquisa. Diante disso já considerei, semelhante a Christine de Pizan afirmara, “como será possível para mim, sendo simples e de pouca inteligência, expressar adequadamente aquilo que não pode ser bem expresso ou bem compreendido?”.[2] Seria possível realizar tal trabalho satisfatoriamente ao que me proponho nessa pesquisa? Entretanto, ao me entregar ao desânimo e ansiedade, encontrei na própria Christine as respostas que precisava para avançar, visto que, como se ela estivesse em meu quarto, me disse

Não, não importa o quanto de conhecimento um homem possa ter, ele não poderia explicar completamente o que eu gostaria de escrever. [...] Seria difícil para mim falar adequadamente dessas coisas, com o pouco entendimento que possuo, quando os muitos sábios homens que escreveram sobre o assunto foram incapazes de registrar tudo o que pode ser dito sobre a Fortuna; mas eu não vou desistir.[3]

Quase que como uma repreensão aos meus anseios e pretensões, Christine de Pizan se desloca de 1403 até 2019 para me retornar ao percurso adequado. Como ela também me disse que iria...

...contar como, através dos esforços de meus laços mais próximos, fui colocada na corte da Fortuna, onde fiquei por muito tempo. E pretendo dizer-lhe onde seu domicílio estranhamente construído está localizado, para descrever seus modos e atividades imperfeitas, assim como os vi durante todo o tempo em que estive em sua corte, onde acontecem muitas aventuras; o que eu aprendi lá; o que aconteceu comigo lá; e como a Fortuna se lembrava de mim quando lhe agradou ajudar-me rapidamente em minha maior necessidade; e o tipo de ajuda que ela me dava, que foi apenas o suficiente (123-38)[4].

A confiança, quem uma vez deixara meu inconsciente, retornou. Seguro e determinado a me aproximar do desconhecido. Dado que aqueles a quem ela considerava sábios homens falham e ainda assim o fizeram, e a própria Christine de Pizan não desistiu diante de tais arbitrariedade, quem sou eu para julgar que não conseguirei, ou até mesmo que minha pesquisa histórica poderia estar completa? Pesquisa nenhuma está completamente finalizado quando seus autores a concluem e publicam-na ou apresentam-na a seus pares. O desapego necessário à nossa escrita tem suas funções, entre elas a de permitir que os outros nos critiquem, e dessa forma, desenvolver ainda mais nossa escrita. Semelhante episódios ocorreram com Christine de Pizan, ao não dispor de seu pai e de seu esposo precisou tomar algumas decisões para seguir sua vida e prover sua família. Em seu livro La Mutacion de Fortune é possível encontrar parte desse processo.

Mas para melhor permitir que você entenda o objetivo do meu projeto, eu lhe direi quem eu sou, eu quem estou falando, eu que fui transformada de mulher em homem pela Fortuna, que desse modo o queria. Assim ela me transformou, meu corpo e meu rosto, completamente nos de um homem normal. E eu, que outrora fui uma mulher, sou agora de fato um homem (não estou mentindo, como a minha história demonstrará amplamente) e, se eu outrora fui uma mulher, minha autodescrição atual é a verdade. Mas relatarei, por meio da ficção, o fato de minha transformação, como me tornei de uma mulher a um homem, e quero que as pessoas chamem esse poema, uma vez que a história se torne conhecida, de Mutacion de Fortune (139-56).[5]

Somente ao permitirmos que nossos pensamentos e textos sejam lidos, ouvidos, e refletidos é que poderemos identificar quais partes devemos aperfeiçoar e quais provavelmente acertamos. Seria isso que Christine de Pizan tinha em mente quando decidiu constituir o mencionado dossiê com as cartas que recebeu em contestação às suas e envia-las para Isabeau de Bavière, rainha da França e Guillaume de Tignonville, Prevost de Paris? Provavelmente não, ainda assim, nunca teremos a totalidade de suas intenções, como já foi discutido no capítulo anterior. Contudo devo permanecer no território do praticável, que é a aproximação histórica a partir da análise das fontes.

Durante quase quatro décadas, incluindo mais de vinte textos em verso e prosa, Christi-ne de Pizan recorre à suas experiências e hábitos pessoais para constituir suas narrativas. Além disso, como desorre Marilynn Desmond

...em cenários autobiográficos e intervenções autorais inseridas ao longo de sua obra, Christine conecta seu surgimento como poeta nos anos 1390 à sua viuvez. Tais co-mentários contextualizam seu desempenho como escritora em relação a suas experi-ências como mulher.[ˆ6]

As experiências de Christine enquanto sujeito ativo em sua sociedade, revelam-se intensamente refletindo, então, em todas as suas obras. Como sujeito mulher, em uma sociedade patriarcal, fortemente marcada pela figura masculina de autoridade, seria essencial a uma mulher que necessite reforçar sua atuação social, pelo motivo que for, se aproximo dessa figura supostamente masculinizada. Isso torna-se evidente em seu livro Mutacion de Fortune de 1403. No entanto, se analisado cuidadosamente, já em seus ciclos de poemas ou debates epistolares é possível encontrar tais evidências. Desse modo, seria possível indicar que todo seu trabalho textual após 1402, teria por base suas primeiras obras em verso e prosa, ou seja, seus poemas e debate epístolar.


E asssim segue minha dissertação...

barra_azul_claro
Img-01
barra_azul_escuro
Imagem: Iluminura do primeiro fólio do Manuscrito da Rainha | British Library Ms. Harley 4431
barra_azul_claro

Notas


1 - Cf. PIZAN, Christine de. Œuvres poétiques de Christine de Pisan, ed. Maurice Roy, Paris: Firmin Didot et cie, Tome. I, 1886, pp. 12.
Cent Ballades, XI: Seulete suy sanz ami demourée, tradução livre: Traduçõa livre: “[...] Sozinha estou em frente a porta ou à janela,/ Sozinha estou no canto de meu quarto, /Sozinha estou a chorar, /Sozinha estou, melancólica ou dormente, /Sozinha estou, nada me é tão doloroso/ Sozinha estou, em meu quarto confi-nada, /Sozinha eu estou, sem um amigo permaneço.[...]”.

2 - Cf. PIZAN, Christine de; BLUMENFELD-KOSINSKI, Renate; BROWNLEE, Kevin. The Selected Writings of Christine de Pizan. Trad. Renate Blumenfeld-Kosinski; Kevin Brownlee. New York: W. W Norton & Company, 1997, p. 89.
“How will it be possible for me, being simple and of small intelligence, to express adequately that which cannot be well expressed or well understo-od?”.

3 - Idem. “No, no matter now much learning a man might have, he could not fully describe what I would wish to write.” [...] “It would be difficult for me to speak properly now of these things, with the small understanding that I possess, when the many great men who have written about them have failed to record all that can be said about Fortune; but I will nevertheless not give up.”

4 - Idem. “Now I will tell how, through the efforts of my closest relations, I was placed in Fortune's court, where I stayed for a long time. And I intend to tell you where her strangely constructed domicile is located, to describe its imperfect ways and activities, just as I saw them for as long as I was at her court, where many adventures occur; what I learned there; what happened to me there; and how Fortune remembered me when it pleased her to help me quickly in my great need; and the kind of help she gave me, which was scarcely sufficient (123-38)”.

5 - Idem. “But in order better to enable you to understand the goal of my project, I will tell you who I am, I who am speaking, I who was transformed from a woman into a man by Fortune who wanted it that way. Thus she trans-formed me, my body and my face, completely into those of a natural man. And I who was formerly a woman, am now in fact a man (I am not lying, as my story will amply demonstrate), and, if I was formerly a woman, my current self-description is the truth. But I shall describe by means of fiction the fact of my transformation, how from being a woman I became a man, and I want people to name this poem, once the story becomes known, Fortune's Transformation. (139-56)”

6 - Cf. DESMOND, Marilynn. Christine de Pizan: gender, authorship and life-writing. In: GAUNT, Simon; KAY, Sarah (Ed.). The Cambridge Companion to Medieval French Literature. Cambridge University Press, 2008, p. 123
“...in autobiographical vignettes and authorial intrusions inserted throughout her work, Christine connects her emergence as a poet in the 1390s to her widowhood. Such comments contextualize her performance as a writer in relation to her experiences as a woman.”

barra_azul_claro
Obrigado pela leitura.
Aguardo ansiosamente para ler seu comentário!
barra_azul_escuro
Ass. Casa
CONHEÇA Ptgram | Pela união da Comunidade Lusófona | @msp-brasil | Entre em nosso grupo no Discord | Projeto Brazilians Power | @Brazilians | Site BraziliansNow.tk
barra_azul_escuro
gif-upvote-resteem
barra_azul_escuro


Sort:  

Falae Leo! Que beleza tudo isso hein?

A própria Dirce te ensinando como se lida com a Dirce e suas "imperfeições" inevitáveis.

Achei excelente ler seu textão, e, saber que está animado e a todo vapor!

Muito interessante o modo como descreve a "memamorfose", inclusive!

Valeu! Sucesso!

ptgram

Posted using Steeve, an AI-powered Steem interface

Congratulations! This post has been upvoted from the communal account, @minnowsupport, by leodelara from the Minnow Support Project. It's a witness project run by aggroed, ausbitbank, teamsteem, someguy123, neoxian, followbtcnews, and netuoso. The goal is to help Steemit grow by supporting Minnows. Please find us at the Peace, Abundance, and Liberty Network (PALnet) Discord Channel. It's a completely public and open space to all members of the Steemit community who voluntarily choose to be there.

If you would like to delegate to the Minnow Support Project you can do so by clicking on the following links: 50SP, 100SP, 250SP, 500SP, 1000SP, 5000SP.
Be sure to leave at least 50SP undelegated on your account.

Coin Marketplace

STEEM 0.26
TRX 0.11
JST 0.033
BTC 64507.66
ETH 3080.07
USDT 1.00
SBD 3.85