Resposta a Felipe - Perspectivas sobre novas diretrizes da Saúde Mental

in #pt5 years ago (edited)

Na semana passada @felipejoys no post Mudanças do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro
perguntou minha opinião sobre a direção do governo federal em relação a saúde mental, após a divulgação das diretrizes da nova Nota Técnica n° 11/2019. Que pode ser conferida na íntegra nesse link

Primeiro agradeço ao @felipejoys pela consideração em solicitar minha perspectiva sobre, e o parabenizo por trazer esse tema pertinente.

É uma discussão complexa que abrange diferentes perspectivas, tomarei a partir das afirmações levantadas no post, que em si já nos dá uma ótima perspectiva geral.

O Hospital Psiquiátrico passa a ser incluído na RAPS e não mais se incentiva o seu fechamento.
O CAPS não é mais considerado modelo substitutivo ao modelo hospitar
A eletroconvulsoterapia é resgatada como método de tratamento (está "modernizada")
A política de drogas vai privilegiar o modelo da abstinência e não mais o de redução de danos, e reforçar a política proibicionista. O que leva novamente ao modelo de internação e tratamento via isolamento, que fortalece as Comunidades Terapêuticas.
Internar crianças e adolescentes volta a ser uma medida de intervenção possível e cabível.

Essa resolução está causando grandes debates, e como muito do nosso tempo, vem sendo tomada por vezes em seus extremos.

Também não é uma direção do governo Bolsonaro em si, já vinha sendo desenhada anteriormente.

Antes exponho o classismo e paixões que se envolvem nessa discussão. De um lado a história o poder médico, e supremacia científica que orientava as políticas públicas em relação a doença mental e que foi substituído através da reforma por movimentos humanistas e antipsiquiatria do campo das humanas que incluem médicos, psicólogos, sociólogos, assistentes sociais e outros profissionais que lutaram contra o tratamento desumano dos manicômios.

Ainda hoje vivemos reverberação desses polos. Diferentes saberes não se conversam. Não se constroem pelas convergências, se acentuando nas divergências.

M. Foucault traz muito claro em a História da Loucura, os moldes sociais que se construiram os asilos/manicômios. E o nascimento da psiquiatria se constrói nessa perspectiva.

Em consequência do moralismo da Idade Media, e pós Idade das Trevas, grandes locais foram construidos as margens das cidades, onde os excluídos da sociedade ficavam. Eram os "leprosos", "sifílicos", mulheres em resposta ao machismo, os loucos propriamente ditos, retardos mentais, e outros que a norma moral vigente não fornecia um lugar.

Com crescimento da medicina e a evolução científica, industrialização, mudanças culturais movidas por correntes de pensamento pós iluminismo, esses locais excludentes deram lugar aos manicômios. Em uma convergência
religião, medicina e Impérios.

O surgimento da psiquiatria com P. Pinel começou a diferenciar as formas de doenças, e categoriza-las. Inicia a clínica médica investigativa e da início a descoberta de inúmeras doenças. Pinel trazia ideais iluministas e buscava a cura, uma de suas posições terapêuticas ficou conhecido como tratamento moral.

Isso é muito confundido na história. Há muitas interpretações erradas do tratamento moral. Não sem razão, já que por essa premissa, se isolou os doentes mentais, conhecidos na época como alienados, e construi-se imensos manicômios/hospícios que abrigavam milhares de pessoas e foi utilizado como fonte de renda de muitos médicos, políticos e latifundiários.

Ao custo da ciência, e da relação ciência x Estado x religião x capital x ética x caráter; levando tratamento de seres humanos de forma muitas vezes extremamente cruéis. Relacionado sempre a evolução civilizatória - sociocultural de determinada sociedade, que se faz de formas diferentes de acordo com cada história social, cada geografia.

O Brasil talvez represente o pior do legado do grande médico que foi Pinel. Temos inúmeros exemplos como o Holocausto de Barbacena.

No Rio na Praia Vermelha chegou a ter em média aproximadamente 10-15 mil pessoas. No Pedro 2 no Engenho de Dentro e na Colônia depois da Barra por volta de 30 mil para cima.

Em quartos - celas, os pacientes comiam junto aos seus excrementos, tomavam banhos coletivos de mangueira, quando tomavam, eram punidos moralmente e cruelmente por motivos que não eram condizentes com alguma razoabilidade.

Esse modelo do tratamento hospitalar é considerado hospitalocentrismo. Cresce junto ao crescimento da biomedicina como ciência, capacidades cada vez maiores de processamento de informação, e análises estatísticas. A biomedicina traz muitos avanços, mas na perspectiva da província do mental, leva a uma confusão de linguagens, e está atrelado ao capital.

Com essa perspectiva também temos evolução científica, no sentido de teorias, ciências verificáveis, junto a farmacologia. Não seria possível desistitucionalização sem a farmacologia.

O movimento das ciências humanas junto ao científico filosófico, trouxe o período conhecido como Reforma Psiquiátrica, de início na Europa. Também junto com a evolução sócio cultural geral das civilizações européias.

Grandes almas trouxeram esse movimento de reforma ao Brasil. Uma de muitas, como a médica e cientista Nise da Silveira.

Em oposição ao modelo substitutivo do hospitalocentrismo, vem o modelo de assistência territorializado e descentralizado, de acesso e tratamento a saúde que no Brasil, conhecidos como Centro de Atenção Psicossocial(Caps), e as Clínicas de Família.

Esse imenso resumo serve para introduzir minha perspectiva.

Existem indicações bem estabelecidas de internação, não é difícil. Faltam melhores profissionais, como em todas as áreas. Melhor entendimento político cultural também. Não vejo o Caps como modelo substitutivo, a não ser que se adeque como tal. O tratamento desumano pode acontecer em qualquer lugar, tambem acontecem em alguns Caps. E internações por vezes, ainda mais no contexto social que vivemos, são necessárias. Relacionado a renda social também, quanto pior, mais indicações, por diferentes fatores.

Internações não são longas como eram. Mesmo assim ainda vivemos processo de desinstitucionalização de paciente que ficaram internados a vida toda. Regiões evoluem de forma diferente, de acordo com administração pública. Muitos pacientes institucionalizados durante a vida toda, ficaram sem vínculos familiares vivos. Não tenho dúvidas sobre necessidade de internação, como e onde, é uma questão a se discutir. Acredito no momento que deveriam ser em Hospitais Gerais e não Psiquiátricos.

Internação infantil é controversa. Eu não tenho condições de emitir uma opinião sobre. Mas nos casos que tive oportunidade de aprender não vi necessidades que justificassem. A não ser risco social iminente de morte.

Então deve-se ter em mente que a internação é sempre temporária. A compulsória é por via jurídica, poucas por indicação médico - clínica. Por indicação clínica pode ser voluntária ou involuntária. O médico responde na justiça em caso de imprudência e/ou imperícia, é quem bate o martelo. Quanto mais profissionais diferentes melhores são as indicações e endereçamentos. Deve-se ter prudência e ética para com a função que exerce, e responder pelos atos que executa, perante ao outro e a sociedade.

A eletroconvulsoterapia é um tratamento que funciona, com critérios bem estabelecidos, provados cientificamente, em termos de evidências teóricas e verificáveis. Com alto nivel de evidência. É realizado por especialistas nesse exame. Eu pessoalmente indico pouco, mas não hesitaria em indicar caso necessário. E se eu tiver um surto, deixo claro que escolheria como tratamento de escolha.

Existe uma cultura de tortura que não é verdade para quem fazia medicina. A tortura se executada com esse tratamento era por falta de caráter, que acontece em muitos animais humanos primitivos - selvagens. Animais humanos selvagens tem-se muitos, de diferentes profissões, não invalida o procedimento eficaz.

As vezes é fácil falar, mas quando tem que decidir em por exemplo uma grávida no primeiro trimestre, em surto psicótico com risco de suicídio como em uma melancolia, entre a eletroconvulsoterapia ou antipsicótico, e bancar essa decisão em relação risco x benefício, resposta juridica, ética, evidências são claras nesse sentido a favor da eleteoconvulsoterapia, do que correr risco de má formações fetais. Quem decide e se responsabiliza é o médico, independente das consequências.

A política de drogas é um atraso que remete a 500 anos atrás. A não ser que construa milhares de comunidades terapêuticas, forneça qualidade de vida, atenção, renda. Não funciona. O paciente fica bem quando fora do social que o levou ao estado que está, e em tratamento. As más igrejas evangélicas se regogizam de tanto dinheiro que envolve essa proposta, e muitos médicos, empresas e políticos também.

Por último os Caps funcionam aquém do que poderiam. São construções sustentadas com muito esforço por trabalhadores da saúde mental. São brilhantes, fazem muito quando bem gerenciados, e tem potenciais incríveis.

Todos nós que estamos aqui sabemos que a centralização beneficia a poucos. A descentralização e funcionamento em rede é premissa do SUS, muito antes da tecnologia que nos converge aqui, a tecnologia blockchain.

No final o SUS vem sendo sucateado em vista da privatização da saúde brasileira. Essas diretrizes representam uma parte disso. Essas medidas tem coerência em alguns pontos e outros nenhuma. As repercussões negativas se sobrepõe as positivas.

Somos livres, saúde não é só dinheiro. O SUS serve a populações que muitos desconhecem. Serve a humanidade. A civilização contra a barbárie. Quem é contra o SUS não tem ideia alguma do que é saúde e economia.

O incesto entre Estado e corporações podem nos bater, mas sobreviveremos. Em nome de grandes almas, na minha área como Nise da Silveira, Juliano Moreira, Lula Wanderlei, entre outros tantos.

O SUS é público, universal, descentralizado e não deixaremos privatizar a saúde mental por dinheiro. No SUS atuamos em prol de ideais coletivos e não no benefício do lucro as custas do ineficaz. Então atuamos até em vista do lucro, já que não queremos gastar dinheiro com que sabemos que não funciona.

Estamos em tempos rudes. Mas já passamos por tempos piores, por mais que possa ficar pior. E se perdermos como dizia Darcy Ribeiro, estarei orgulhoso do lado dos perdedores.

Confira também a perspectiva, diferente da minha, da @aliny A Luta Antimanicomial.

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Muito interessante sua perspectiva, como profissional da área da saúde. Me fez pensar em aspectos sobre os quais eu não havia me atentado. De toda forma concordamos com o fato de que as coisas não vão bem nesta área, e que, cada um ao seu modo, seguiremos lutando. Obrigada pelas reflexões, Matheus!

Certamente. É o mais importante. E que o diálogo se sustente entre as diferentes direções do saber, todos tem a ganhar. O saber não se anula, se complementa. As diferenças nos enriquecem.

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