A luta antimanicomial

in #pt5 years ago (edited)

Depois de uma nota técnica que o coordenador geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (Ministério da Saúde), Quirino Cordeiro, soltou - e que o próprio ministro da saúde diz desconhecer - vários profissionais e organizações estão demonstrando indignação e revolta com o que viria a ser uma mudança de rumo nas políticas públicas da área, mudança essa que tem sido chamada de retrocesso.

Resumindo, mas bem resumidamente mesmo, o Brasil sempre teve manicômios. Na década de 70 iniciou-se um movimento para o fim desse tipo de instituição, porém somente em 2001 conseguiu-se uma lei que legitimasse a reforma psiquiátrica, diminuindo drasticamente o número de leitos pelo país no anos seguintes. Não que os manicômios tivessem sido extinguidos, mas a partir desta lei a internação não deveria mais ser a regra em termos de tratamento, e sim a exceção. Somente casos mais específicos e de maior gravidade deveriam culminar em internação. Até então o governo mantinha manicômios estatais, que, após a reforma, em muitas cidades foram transformados em pronto-socorros psiquiátricos. Quando estava em crise, o paciente era atendido e liberado. Para os casos mais graves, o SUS mantinha leitos em clínicas particulares.

As justificativas para o fim dos manicômios são muitas, e vão desde o questionamento da eficiência de alguns métodos - como a eletroconvulsoterapia - até violação de direitos humanos a que muitos dos seus internos são submetidos. Em Barbacena (MG), mais de 60 mil internos teriam morrido no que foi conhecido como o Holocausto Brasileiro (versão repudiada pelo governo municipal, claro), mas que foi amplamente divulgada inclusive tendo livro e documentário dedicados a denunciar tal fato histórico.

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A luta antimanicomial, através do esforço conjunto entre pesquisadores e profissionais, apresentou à sociedade outras alternativas de tratamento, e assim nasceram os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Os CAPS estão espalhados por todo o país, sendo constituídos de equipes multiprofissionais, e oferecem consultas individuais e atividades terapêuticas coletivas para os pacientes. Existem vários tipos de CAPS, como o CAPSi (infanto-juvenil), CAPS AD (álcool e drogas) e os CAPS I, II e III (basicamente a mesma coisa, só muda a composição da equipe em função do tamanho da demanda), que são o CAPS que atendem indivíduos adultos com transtornos mentais graves e persistentes. Neste modelo de tratamento não existe internação. E sim acompanhamento sistemático e contínuo. Medicamentos e atividades terapêuticas se complementam quando necessário. Nos casos mais severos, encaminha-se para a internação em alguma comunidade terapêutica particular, que tenha convênio com o Estado.

A luta antimanicomial entende que a instituicionalização dos portadores de transtornos mentais fere a dignidade humana, pois é desprovida de fundamentos científicos, servindo somente ao propósito de higienização social. Pegam-se os "loucos" e os trancam em um depósito, para que não possam mais incomodar os que são "normais". Extirpam assim o seu direito de ir e vir e a sua autonomia enquanto indivíduo, alegando que não possuem faculdades mentais básicas para o convívio em sociedade.

A luta antimanicomial acredita nos determinantes sociais de saúde, o que significa que o adoecimento mental em muito está ligado ao contexto social em que a pessoa vive. Tira-la do seu habitat e coloca-la numa bolha em nada resolveria o seu problema, pois quando ela retornar e entrar em contato com o mesmo ambiente de antes, voltará a adoecer. E por isso tantas pessoas foram abandonadas pelo resto da vida dentro dos manicômios, ao longo da nossa história. Porque permaneciam da mesma forma que entravam.

Dentro desta perspectiva acredita-se que é preciso trabalhar o paciente em contato com o seu ambiente cotidiano, para ajuda-lo a desenvolver as habilidades que irão protegê-los do fatores de risco e de agravamento relacionados à sua saúde mental. Assim, o paciente não deve ser removido da sua realidade, e sim ser incentivado a confrontá-la, ao mesmo tempo em que recebe suporte para lidar com suas dificuldades e apoio para desenvolver recursos e potenciais que contribuam com sua autonomia e qualidade de vida.

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Na teoria é uma proposta muito boa. Mas na prática sabemos que o Estado não consegue garantir o atendimento de toda a população que precise desse tipo de serviço. Sabemos que o profissionais trabalham com sobrecarga de trabalho, ambientes precários, recursos escassos, entre outros problemas. E a família, o que dizer da família?

O cuidador que não se cuida adoece. E é exatamente isso que acontece com as famílias. Ao longo dos anos elas adoecem junto ao portador do transtorno. Elas chegam ao ponto de não saber mais o que fazer, de tão esgotadas e desesperançosas que ficam com a situação. O sonho de quase toda família que tem um membro nesta condição é conseguir uma internação. Não só pela crença de que um tratamento intensivo possa curar o ente querido, mas também pela própria necessidade de descansar a mente e o coração depois de esmurrar a ponta da faca por tantos anos, na maioria dos casos.

A família idealiza a internação, e é sempre um trabalho duro convencê-la de que muito provavelmente esta decisão pode piorar mais ainda o quadro da pessoa. Ou que, na melhor das hipóteses, em pouco tempo ela volta e tudo volta a ser como antes. É duro convencer alguém cansado de que ainda há muito chão para se andar, e que no final não se pode garantir onde ela vai chegar. É duro ver uma pessoa adoecendo ao cuidar de outra pessoa adoecida.

Mas incentivar a institucionalização compulsória de um ser humano, ainda que em condições razoáveis e dentro de padrões dignos, sem que ele tenha cometido crime algum, me soa como coerção, desrespeito ao livre arbítrio e à soberania do indivíduo. "Mas é para o bem dele". Sim, em alguns caso pode ser bom mesmo, mas é preciso muita cautela, debate, bom senso, estratégia e consenso para que pessoas nunca mais sejam depositadas perpetuamente entre muros, como se fossem dejetos desprovidos de emoções, afetos e sonhos.

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Ótimo post! Tenho um discurso diferente, por coincidência expus hoje, de forma mais positiva, em resposta a um questionamento do @felipejoys, na conta @posthero. Marquei ele para que ele possa ler perspectivas diferentes. Acredito bastante no potencial dos Caps, temos serviços muito bons, que, mesmo nesse caos, prestam um serviço de qualidade dentro do possível. Fiquei 6 meses no Caps AD Raul Seixas e estou há quase 6 no Caps Clarice Lispector. Foi e vem sendo uma grande experiência. É uma pena o que estão fazendo com a saúde daqui, tem-se ótimos profissionais, e fazem muito nesse caos social. Como é difícil fazer a sociedade entender e lutar pela descentralização da saúde pública. Como é difícil construir, mesmo com argumentos científicos, ou dos melhores valores humanos, uma sociedade inclusiva. Vejo essa piora como um fenômeno cultural, com referências em autores como C. Melman em o Homem Sem Gravidade. Obrigado pela reflexão!

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