Crianças e adolescentes que crescem na rua

in #pt5 years ago (edited)

Hoje no trabalho eu e outra colega estávamos desabafando sobre a dificuldade de lidar com os casos em que crianças e adolescentes vivem ou praticamente vivem nas ruas. Conselho tutelar, polícia, CAPSi, Defensoria, serviço de abordagem social, CREAS, OSCs... são inúmeros os lugares e serviços por onde essas pessoas e seus familiares passam, em alguns deles também inúmeras vezes.

Os pais ou responsáveis são sempre notificados pelo conselho tutelar, porém, a grande realidade é que a maioria deles passa o dia fora trabalhando, muitos têm problemas com álcool ou outras drogas, e em muitos casos existe uma mãe sozinha com múltiplos filhos e dificuldade para cuidar de todos de forma protetiva. Existem os casos de maus tratos, nos quais as crianças e jovens que vão para a rua, estão realmente fugindo de situações onde sua integridade e dignidade está sendo violada dentro de casa. Estes geralmente se tornam moradores de rua, pois rompem permanentemente o vínculo com os familiares. Entretanto, da mesma forma existem muitos casos (mas muitos mesmo) onde a relação entre pais e filhos é respeitosa e até carinhosa. Neste caso estamos falando de crianças e adolescentes que passam o dia ou dias na rua, mas acabam frequentando com alguma regularidade a casa dos responsáveis para se alimentar, higienizar e descansar. O que acontece então, que eles preferem os perigos da rua do que o conforto de estar com aqueles a quem dizem amar?

Geralmente as crianças e adolescentes - que preferem na maior parte do tempo a rua ao lar - não estão fugindo dos pais e familiares, e sim da sua própria condição de vida. Viver em casas lotadas de gente, em cômodos apertados, sem conforto, as vezes sem comida, água ou energia. Sem internet, tv, celular. Sem expectativa de dias melhores. Muitas vezes, tendo que cuidar de vários irmãos menores, ou idosos acamados. Viver sem ter uma roupa para sair, comer um lanche com os amigos, ir à uma festinha. Viver sem ter um brinquedo, experimentar um esporte, comprar um gibi. Viver engolido cotidianamente por dificuldades, privações e problemas. Carregando a cruz pesada que muitos de nós, adultos, sequer sonhamos em conseguir carregar um dia. Nem por isso odeiam seus pais. Pelo contrário, eles os amam tanto, que muitas vezes somem por dias para que possam se entorpecer longe de suas vistas, para que não morram de desgosto. Ou para evitar que, num momento de fissura, roubem dos próprios pais aquilo que lhes custou tanto conquistar. E assim eles vão para a rua, buscando o alívio, a liberdade e o prazer que lhes foram negados desde sempre.

Viver de forma precária na rua não é muito diferente da precariedade da sua própria condição de vida, dentro de casa.

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Claro que na rua não há o afeto e o cuidado dos pais, mas essas crianças e adolescentes não estão carentes disto. Estão carentes de oportunidades, estímulos, interação social e lazer. Estão carentes da sua própria infância e juventude, às quais nunca tiveram o direito de viver.

E nas ruas encontram os aliciadores, exploradores, traficantes e toda essa turma da pesada, que vêem nos pequenos várias pequenas grandes oportunidades de se dar bem.

Até pouco tempo não existia uma política pública voltada para essa situação. Todas as leis e serviços para pessoas em situação de rua contemplavam apenas a população adulta deste universo. Até que em 2017 o então presidente Michel Temer assinou um documento intitulado Diretrizes Nacionais para o Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, onde pode-se encontrar diretrizes para atuação técnica e também uma proposta de serviço voltada a esse público. Até a presente data, apenas Belo Horizonte (MG), conseguiu implantar uma unidade destas (que na verdade funciona desde antes da publicação destas diretrizes).

Entidades da sociedade civil organizada também atuam neste sentido, mas são poucas comparado ao tamanho do problema. O esfacelamento da estrutura familiar e a condição socioeconômica destas famílias contribui grandemente para esse triste panorama, onde humanos tão vulneráveis se lançam sem proteção alguma aos espaços públicos e ao caos social.

Só que, apenas esses fatores não determinam o destino de todas as crianças e adolescentes que vivem em realidades duras e cruas. A subversão de valores que impera na nossa sociedade atual, ao meu ver, é um ponto importante que deve ser ampliado nesta reflexão. A deturpação dos valores e princípios pode ser triste nas classes mais favorecidas, mas é devastadora para os mais pobres. Deixar de pagar um bom curso para comprar um tênis da moda. Protelar uma ida ao parque mas bater ponto na balada. Não ter tempo para quem se ama, mas ficar horas no celular, no salão de beleza ou no boteco. Desconsiderar as conquistas escolares e profissionais, mas reparar na estética e no lifestyle. Entre vários outros HÁBITOS que temos... você consegue projetar as consequências disto em uma família de classe média, e em uma família pobre? Nesta última, ela simplesmente está desperdiçando as únicas chances que tinha de melhorar sua situação. Justamente porque os recursos são escassos, é que deveriam ser melhor utilizados. Não há margem para erro, infelizmente, como nós temos.

A consequência da falta de uma escala prioritária de valores e princípios que fuja do consumismo, da superficialidade e do hedonismo, entre toda a sociedade, mas principalmente entre os que já estão em desfavorecimento social, é a reprodução do ciclo da pobreza, da negligência, da violência, da invisibilidade social e de todos os agravantes que tornam a existência de tantas crianças e adolescentes um fardo que elas mesmas não conseguem carregar.

A rua, para nós, é perigosa. Para elas é o refúgio de que dispõem. Infelizmente.


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@aliny que excelentes colocações. E saiba que penso da mesma forma que você, pois a rua para muitos deles é o refúgio, para aquilo que não quer ver ou vivenciar. Infelizmente, vivemos em uma sociedade egocêntrica e deplorável em valores, que atinge parte massiva da população. Uma pena que, as Diretrizes Nacionais para o Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situação de Rua funciona apenas em Minas. Depois vou lê-la com mais atenção e começar a cobrar aqui no estado que resido, é necessário movimentar-se e mobilizar mais pessoas....Vou tentar! ; )
Parabéns pelo texto. Obrigada por compartilhar : )

Oi, Tábata, que bom que gostou do post e que pensa em se mobilizar em relação a isso. Também estamos na luta aqui no município, mas é uma luta muito árdua, É necessário mobilizar muitos políticos e isto é quase impossível, pois como você disse, estamos neste tipo de sociedade onde a prioridade é o que vai dar retorno pessoal direto, e o resto que espere. Mas seguimos na luta! Obrigada pelo comentário!

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Lembrei de uma iniciativa dos anos 80, com o escritor Fernando Moraes como secretário da educação, quando lançaram uma moeda alternativa distribuída aos motoristas nos postos de gasolina cujo ideia era substituir as esmolas ou comércio ambulante (muito presente na época). A moeda era conversível em produtos alimentícios e brinquedos em lojas que recebiam os garotos como clientes, que funcionavam em espaços do governo ou conveniados. Acho que teve boa receptividade mas foi proibida pelo banco central pois ainda não existia a legislação que permite a existência hoje das moedas sociais e solidárias. Claro que isso não resolveria o problema mas pode servir de referência para abordagens inovadoras ou inusitadas. Valeu! Sucesso e boa sorte mais uma vez!!

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Hummm, interessante, Wagner. Uma ideia que pode ser adaptada para os dias atuais, já que hoje é possível não só esse tipo de moeda como também as criptos né. Gostei da sugestão! Obrigada por contribuir

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