Hipermodernidades 17 - A Festa do Efémero

in #pt6 years ago

Hoje, o passado deixa de interessar não pelo facto histórico em si, mas pelo seu consumo superficial e imediato cuja velocidade o remete para o esquecimento ou não entendimento do seu valor, restando apenas o registo digital fotográfico excessivo como memória e prova da passagem por tal lugar, monumento ou museu.

O que de tudo isto fica?

Pouco, muito pouco.

Enquanto o guia explica o valor histórico de um lugar, o híper-turista fotografa compulsivamente sem saber muito bem o que está a fotografar.

Cria-se um abismo entre o conhecimento e o registo inócuo de quem preserva na ignorância.

Memoriza-se o nome do lugar com pedras, mas fica-se sem saber o que representa aquele espaço no contexto histórico regional, nacional ou universal. Nem se quer saber. O que vale são as emoções de ali ter chegado, que a moda da viagem a qualquer custo impõe.

O que se quer é apenas mostrar que se esteve lá, no sítio da moda histórica, provar que se passou por um lugar importante sem lhe interessar as causas da importância do lugar. Mais: que viajou por lugares exóticos, recônditos, quase inacessíveis como exposição e indicador do poder egocêntrico e exibicionista junto da sua pequena comunidade.

Ainda que mais massificado este comportamento não é inédito no que toca à exibição, noutras épocas. Recorda-se que à chegada ao aeroporto dos emigrantes provincianos bem-sucedidos no final da década de 60 do século passado, uma turba de curiosos esperava na gare dos sonhos, exibia capelinas, minissaias plastificadas e berrantes, botas de cunha coloridas, óculos escuros descomunalmente grandes, vestes multicoloridas, longos cabelos, numa mimese da figura do artista de cinema ou de variedades que um sotaque estrangeiro acentuava para que os diferenciasse desde logo dos infelizes pobretanas que os aguardavam curiosos por novidades da «estranja» que a ditadura impedia que chegasse em primeira mão à santa terrinha.

Estabelecia-se imediatamente essa relação de poder de quem tinha saído da miséria sem futuro da aldeia, que tinha passado pelo «bidonville» e cujo esforço e talento no trabalho que os anfitriões estrangeiros se recusavam fazer lhes destinou uma pequena ascensão social que logo exibiam com ingénua arrogância na comunidade que outrora fora a sua.

Deixava-se bajular no desfrute de uma fama efémera que os catapultava momentaneamente para o lugar de celebridades locais cujo heroísmo em terras distantes era amplamente amplificado.

Hoje, o híper-turista das famigeradas férias em exóticas terras distantes tem o mesmo comportamento, já não na aldeia mas no espaço variegado dos subúrbios, no prédio onde habita, no pequeno círculo de amigos que convida para jantares onde se exibem as fotos dos telemóveis de locais por onde passaram sem saber muito bem o seu contexto e significado histórico.

É importante mostrar que se esteve lá. Não é importante saber o que por lá se passa ou aconteceu. Os marcos dos factos históricos, os museus ou feiras medievais ou renascentistas, deixam de ter interesse a partir do momento que o que mais se valoriza é o seu registo, não para mais tarde recordar, mas para mais cedo se exercer esse pequeno poder sobre o infeliz que ainda não conseguiu fazer o mesmo.

Poderia parecer que havia uma onda de interesse pela memória colectiva, mas ela é só navegada, na generalidade, pelo prazer de estar na moda. Numa moda que se serve das tradições e do passado como objecto de consumo descartável e não como enriquecimento pessoal, o que seria mais desejável.

Esta redescoberta dos locais do passado no presente alimenta o desejo de se afirmar que se esteve presente e não na vontade genuína de alimentar o espírito através do conhecimento histórico. Há excepções, talvez mais do que seria de esperar. E ainda bem.

Por esse mundo fora, abrem-se museus todos os dias. Cada vila ou aldeia quer ter o seu numa concorrência desenfreada em busca de singularidades que a diferencie do vizinho, o que não foge à rivalidade ancestral.

Os pequenos e os grandes acontecimentos históricos são comemorados para recuperar uma memória que tem muito pouco a ver com o interesse cultural objectivo mas com a economia e a atração respectiva. Ao colocarem-se aldeias nos mapas dos itinerários turísticos, está a dar-se um poder a essas aldeias, que o merecem, que as ditaduras paradoxalmente sempre recusaram dar. Ao democratizar-se o espaço da memória colectiva, o que é sem dúvida um bem, está-se ao mesmo tempo a mobilizar as entradas económicas que tanta falta fazem à modernização do presente.

Contudo, pouco se investe para que o híper-turista fixe por momentos a sua atenção no que realmente visita e não apenas no desejo de fabricar representações que ajudarão a sua memória a recordar momentos de lazer que passam ao lado do objectivo primordial da viagem: o conhecimento do facto histórico, dos grandes e pequenos acontecimentos da história.
Há festas e festividades, tudo se comemora, mas o que ressalta paradoxalmente é a festa do efémero.

Luís Filipe Sarmento, Gabinete de Curiosidades, 2017, Lisboa e São Paulo

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Foto: José Lorvão

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